quinta-feira, 20 de março de 2008

Palavras ao vento - Pedro Bial


A primeira letra do alfabeto é também a primeira letra da palavra amor e se acha importantíssima por isso!
Com A se escreve "arrependimento" que é uma inútil vontade de pedir ao tempo para voltar atrás e com A se dá o tipo de tchau mais triste que existe: "adeus"...
Ah, é com A que se faz "abracadabra", palavra que se diz capaz de transformar sapo em príncipe e vice-versa...
Com B se diz "belo" - que é tudo que faz os olhos pensarem ser coração;
e se dá a "bênção", um sim que pretende dar sorte.
Com C, "calendário", que é onde moram os dias e o "carnaval",esta oportunidade praticamente obrigatória de ser feliz com data marcada.
"Civilizado" é quem já aprendeu a cantar ´parabéns pra você` e sabe o que é "contrato": "você isso, eu aquilo, com assinatura embaixo".
Com D , se chega à "dedução", o caminho entre o "se" e o"então"...
Com D começa "defeito", que é cada pedacinho que falta para se chegar à perfeição e se pede "desculpa", uma palavra que pretende ser beijo.
E tem o E de "efêmero", quando o eterno passa logo;
de"escuridão", que é o resto da noite, se alguém recortar as estrelas;
e "emoção", um tango que ainda não foi feito.
E tem também "eba!", uma forma de agradecimento muito utilizada por quem ganhou um pirulito, por exemplo...
F é para "fantasia", qualquer tipo de "já pensou se fosse assim?";
"fábula", uma história que poderia ter acontecido de verdade, se a verdade fosse um pouco mais maluca;
e "fé", que é toda certeza que dispensa provas.
A sétima letra do alfabeto é G, que fica irritadíssima quando aconfundem com o J.
G, de "grade", que serve para prender todo mundo - uns dentro, outros fora;
G de "goleiro", alguém em quem se pode botar a culpa do gol;
G de "gente": carne, osso, alma e sentimento, tudo isso ao mesmo tempo.
Depois vem o H de "história": quando todas as palavras do dicionário ficam à disposição de quem quiser contar qualquer coisa que tenha acontecido ou sido inventada.
O I de "idade", aquilo que você tem certeza que vai ganhar de aniversário, queira ou não queira.
J de "janela", por onde entra tudo que é lá fora e de "jasmim",que tem a sorte de ser flor e ainda tem a graça de se chamar assim.
L de "lá", onde a gente fica pensando se está melhor ou pior do que aqui;
de "lágrima", sumo que sai pelos olhos quando se espreme o coração;
e de "loucura", coisa que quem não tem só pode ser completamente louco.
M de "madrugada", quando vivem os sonhos...
N de "noiva", moça que geralmente usa branco por fora e vermelho por dentro.
O de "óbvio", não precisa explicar...
P de "pecado", algo que os homens inventaram e então inventaram que foi Deus que inventou.
Q, tudo que tem um não sei quê de não sei quê.
E R, de "rebolar", o que se tem que fazer pra chegar lá.
S é de "sagrado", tudo o que combina com uma cantata de Bach;
de"segredo", aquilo que você está louco pra contar;
de "sexo":quando o beijo é maior que a boca.
T é de "talvez", resposta pior que ´não`, uma vez que ainda deixa, meio bamba, uma esperança...
de "tanto", um muito que até ficou tonto...
de "testemunha": quem por sorte ou por azar, não estava em outro lugar.
U de "ui", um "ài" que ainda é arrepio;
de "último", que anuncia o começo de outra coisa;
e de "único": tudo que, pela facilidade de virar nenhum, pede cuidado.
Vem o V, de "vazio", um termo injusto como a palavra nada;
de"volúvel", uma pessoa que ora quer o que quer, ora quer o que querem que ela queira.
E chegamos ao X, uma incógnita...
X de "xingamento", que é uma palavra ou frase destinada a acabar com a alegria de alguém;
e de "xô", única palavra do dicionário das aves traduzida para o português.
Z é a última letra do alfabeto, que alcançou a glória quando foi usada pelo Zorro... Z de "zaga", algo que serve para o goleiro não se sentir o único culpado;
de "zebra", quando você esperava liso e veio listrado;
e de "zíper", fecho que precisa de um bom motivo pra ser aberto;
e de "zureta", que é como fica a cabeça da gente ao final de um dicionário inteiro.

Estatuto do Homem



Artigo 1
Fica decretado que agora vale a verdade, agora vale a vida e de mãos dadas marcharemos todos pela vida verdadeira;

Artigo 2
Fica decretado que todos os dias da semana, inclusive as terças-feiras mais cinzentas, tem direito a converter-se em manhãs de domingo;

Artigo 3
Fica decretado que a partir deste instante, haverá girassóisem todas as janelas, que os girassóis terão direito a abrir-se dentro da sombra e que as janelas devem permanecer o dia inteiro abertas para o verde onde cresce a esperança;

Artigo 4
Fica decretado que o homem não precisará nunca mais duvidar do homem, que o homem confiará no homem como a palmeira confia no vento, como o vento confia no ar, como o ar confia no campo azul do céu; parágrafo único, o homem confiará no homem como um menino confia em outro menino;

Artigo 5
Fica decretado que os homens estão livres do julgo da mentira, nunca mais será preciso usar a couraça do silêncio nem armadura de palavras, o homem se sentará a mesa com seu olhar limpo porque a verdade passará a ser servida antes da sobremesa;

Artigo 6
Fica estabelecida durante dez séculos a pratica sonhada por Isaías que o lobo e o cordeiro pastarão juntos e a comida de ambos terá o mesmo gosto de aurora;

Artigo 7
Decreta e revogada, fica estabelecido o reinado permanente da justiça e da claridade, e a alegria será uma bandeira generosa para sempre desfraudada da alma do povo;

Artigo 8
Fica decretado que a maior dor sempre foi e será sempre não poder dar-se amor a quem se ama e saber que é a água que dá a planta o milagre da flor;

Artigo 9
Fica permitido que o pão de cada dia que é do homem o sinal de seu suor, mas que sobretudo tenha sempre o quente sabor da ternura;

Artigo 10
Fica permitido a qualquer pessoa, qualquer hora da vida o urro do trai branco;

Artigo 11
Fica decretado por definição que o homem é o animal que ama, e que por isso é belo, muito mais belo que a estrela da manhã;

Artigo 12
Decreta-se que nada será obrigado nem proibido, tudo será permitido, inclusive brincar com os rinocerontes e caminhar pelas tardes com imensa begonia na lapéla;parágrafo único, só uma coisa fica proibida, amar sem amor;

Artigo 13
Fica decretado que o dinheiro não poderá nunca mais comprar um sol das manhãs de todas, expulso do grande baú do medo, o dinheiro se transformará em uma espada fraternal para defender o direito de tentar e a festa do dia que chegou;

Artigo Final
Fica proibido o uso da palavra liberdade, a qual será subrimida dos dicionários e do pantano enganoso da dor, a partir deste instante, a liberdade será algo vivo e transparente como um fogo ou um rio, e a sua morada será sempre o coração do homem.

[Pedro Bial]